domingo, 20 de maio de 2018

"Quem diria que seria a China a defender o comércio livre face aos EUA?!" - Éric Vuillard



Leia ou releia a entrevista ao escritor Éric Vuillard, vencedor do prémio literário mais importante de França, o Goncourt

Poucos dias antes da atribuição do prémio literário mais importante de França, o Goncourt, ao livro A Ordem do Dia, correu o boato de que muitos livreiros estariam descontentes com essa possibilidade, dado o livro custar apenas €16 (€13,90 em Portugal, na edição da D. Quixote). O caso, nunca confirmado nem desmentido, provoca um sorriso no laureado, Éric Vuillard, 50 anos, uma das mais singulares vozes francesas da atualidade. “Voilà, fake news...”, diz a brincar. Não frequenta as redes sociais, mas está a par da desinformação de que tanto se fala. Para ele, no entanto, o grande exemplo das “fake news do século” é a invasão do Iraque; um político, George W. Bush, a dizer que existem armas que não existem. São essas encenações que lhe interessam e que ele tenta recriar nos seus livros: a social e a cultural, e, sobretudo, a económica e a política. Já o fez a propósito da Revolução Francesa, da questão colonial, do genocídio dos índios americanos e da Primeira Guerra Mundial.

Volta, agora, a essas encenações a propósito da Segunda Guerra Mundial. A Ordem do Dia, Prémio Goncourt e sucesso de vendas em França, é um espantoso fresco sobre os antecedentes daquele conflito: jogos de bastidores, pactos entre empresários e ditadores, planos megalómanos e nunca concretizados; e, ainda, as muitas danças sociais entre um mundo antigo e aristocrático e uma nova desordem liderada por demagogos e gangsters. De Paris, ao telefone, Éric Vuillard revela à VISÃO a “verdade” que encontrou, através da ficção, sobre o que nos levou à Segunda Guerra Mundial.

Um estudo recente de uma associação judia concluiu que muitos jovens norte-americanos não sabem o que foi o Holocausto. Fica surpreendido com esses resultados?

Completamente. O cenário em França e na Europa é muito diferente. A nossa cultura ficou muito marcada pelo Holocausto, com imensos livros e filmes, alguns integrados nos programas escolares. Claro que o conhecimento do passado, e também da Segunda Guerra Mundial, é reconfigurado a cada geração.

Em que sentido?

Com o passar do tempo surgiram mais testemunhos, foi possível ter uma noção concreta do que aconteceu. Além disso, cada tempo tem a sua ideologia, a sua conjuntura, o que influencia a maneira como vemos o passado e determina o que valorizamos. Ninguém faz nada, hoje em dia, ao nível da criação e do pensamento, sobretudo na Europa, sem ter o Holocausto no horizonte, mesmo que isso seja inconsciente.

No seu livro chega a falar numa falsa consciência.

É um tema central. A negação ou o falso conhecimento. De que forma esta se manifesta em nós, enquanto indivíduos e coletivo, a ignorância de alguma coisa que devíamos saber ou ter sabido? O que sabiam os franceses, durante a ocupação, sobre as deportações para os campos de concentração? Esta pergunta determina todas as outras. Quando não enfrentada, pode levar a uma falsa consciência.

E tornar-se um tema esquecido?

Não diria esquecido, porque é assunto muito estudado. Mas escrever livros ou ensaios sobre este assunto, ou outro, nunca tem nada de neutro. Imagino que não se escreva da mesma forma em Portugal desde a crise económica, que foi muito mais dura do que noutros países europeus. Certamente que os leitores criaram uma nova relação com os livros, mudando talvez os seus interesses e a perceção que tinham do país e da atualidade. Eu próprio, ao escrever este livro, não fui indiferente ao tempo em que estamos a viver.

Vê paralelismos entre a atualidade e a Segunda Guerra Mundial?

Vejo este meu interesse pela Segunda Guerra Mundial como um sintoma do nosso tempo, das nossas preocupações, mas não cheguei a conclusões. Em cada época, o futuro é incerto, numa mais do que noutra. Hoje, ninguém sabe o que vai acontecer nos próximos dez anos. Vemos formas autoritárias a emergir por todo o lado e uma intensificação das desigualdades sociais entre continentes, Estados e classes sociais. No período que mediou as duas guerras mundiais não foi assim.

Mas ninguém foi capaz de prever o que aconteceu...

Num certo sentido, ninguém foi. Porém, quando se viam grupos armados na rua, era possível intuir o que ia acontecer: um golpe de Estado. E, ao dar-se um em Itália, era possível prever outro na Alemanha. Nada disso se vê hoje. A incerteza é maior, porque as causas que levam a determinadas consequências estão escondidas. Até algumas decisões de grande importância se tornaram invisíveis. Marcaram-me muito os comentários de Yanis Varoufakis quando era ministro das Finanças da Grécia.

Sobre a opacidade da Europa?

Mais: sobre a proibição de se tomar notas nas reuniões. “Salvar a Grécia” era uma expressão consagrada e à conta dela não se podia contestar nada. Do que lá se passou não haverá rasto. Se não podemos tomar nota ou ninguém redige tudo o que se disse numa comissão, como é norma nos parlamentos, não podemos confiar no que se diz à saída. Somos contemporâneos de instituições que tomam decisões que não podem ser escrutinadas.

Temos falado de temas atuais e históricos que também são abordados no seu livro. Por que razão os tratou ficcionalmente e não num ensaio?

No sentido mais corrente, o meu livro não é de ficção. Chamam-lhe uma “narrativa”. Não inventei personagens nem acontecimentos. Mesmo as palavras de Hitler são retiradas das memórias de quem se cruzou com ele. No entanto, acredito que a verdade tem sempre uma estrutura ficcional, de montagem e de composição.

É uma construção?

Não nesse sentido pejorativo. A ficção é intrínseca ao Saber. Os acontecimentos que descrevo, e que são anteriores ao início da Segunda Guerra Mundial, adquirem no seu conjunto um significado maior, exterior ao livro. É a montagem que cria o efeito de ficção e está profundamente ligada à busca da verdade que sempre move a literatura.

Um exemplo no livro que pode ilustrar esse efeito?

Não contar as atrocidades cometidas nos campos de concentração teve dois efeitos. O primeiro foi o de libertar-me da falsidade da testemunha: nasci depois da Segunda Guerra Mundial, não sou filho ou neto de um sobrevivente. Falar como se tivesse conhecimento direto seria indecente. Não nos podemos apropriar da dor dos outros. O segundo foi o de poder tratar o assunto de outra forma. No penúltimo capítulo cito quatro necrologias de judeus que se suicidaram. O jornalista que as assina diz que se ignoravam os motivos dos seus atos.

Uma frase feita.

E uma falsidade. Todos conheciam a perseguição aos judeus. Ao falar desses suicídios já estou a falar do Holocausto que, na verdade, começa aí. Estou a colar, em alguns casos apenas a sugerir, as causas e as consequências. Isso permite-me sublinhar que na História existem fios. Podemos seguir uns ou outros. E isso é ficção. Uma ficção que estrutura a minha relação com a verdade.

A ficção toca o coração do leitor?

Sem uma tonalidade afetiva não há literatura. Até um escritor como Flaubert, aparentemente neutro, se revela extremamente irónico nesse distanciamento. A forma como se escreve é tão importante como a investigação que se faz. Pelos tons da escrita, as personagens tornam-se verdadeiras, e o leitor sente o livro.

Como chegou à sequência inicial dos 24 empresários que se reúnem com Hitler e acabam por financiar a campanha eleitoral de 1933?

Essa sequência é um bom exemplo de como escrever indica caminhos. No início, queria mostrar o meu choque com essa colaboração tão precoce dos empresários. Escrevi-a a frio, no registo da surpresa. O bom da escrita é que te diz quando não funciona.

Como?

Começamos a ouvir um ruído desagradável, de panelas a bater ou de papel amachucado, o que significa que nos enganámos. Deitei tudo fora e recomecei. Pois, o que surpreende na vassalagem daquele poder económico é, precisamente, não ser uma surpresa. É banal e constante. Todos os patrões pactuaram e continuam a pactuar com ditaduras. E, quando há embargos, encontram vias para os contornar.

Apesar das atrocidades que cometeram, dos trabalhos forçados de que beneficiaram, das magras indemnizações que pagaram, os produtos dessas grandes empresas continuam à venda. O que podemos fazer?

Às vezes mais, outras menos. As determinações sociais, como sabemos, são muito potentes. Definem--nos. Felizmente, há quem consiga libertar-se e desobedecer à ideologia da sua classe ou do seu tempo. Quanto aos produtos, não deixa de ser curioso sermos representados por marcas. Já não somos artesanais, mas estandardizados. O mundo económico paga-nos, mas também nos vende.

A ocupação da Áustria é central no seu livro. Que significado tem na sua procura de uma verdade superior aos factos?

É o primeiro grande momento da expansão nazi. Pode ser resumida em três frases: as autoridades foram pressionadas; depois vieram os ultimatos; finalmente a Áustria foi ocupada sem resistência. Se tivermos três parágrafos, como nos manuais escolares, podemos dar o contexto. E se tivermos ainda mas espaço, conseguimos surpreender o balbuciar da História.

O balbuciar da História?

Não podemos cair em discursos grandiosos ou mitificados. A Áustria também tinha o seu ditador. A diferença é que, ao contrário de Hitler, pertencia a uma classe social elevada.
Os nazis eram uma amálgama de antigos políticos, de fervorosos prussianos e de gangsters.

Quando esse grupo tão diverso se confrontou com o Velho Mundo, aristocrata, o que aconteceu?

Os primeiros ganharam e os segundos, que fizeram frente a comunistas, sindicatos e outras organizações, cederam. O I Conde de Halifax, que liderou os negócios estrangeiros do Reino Unido, confundiu Hitler com um empregado, quando este lhe abriu a porta do carro. Calças e sapatos daqueles só podiam ser de um campónio, pensou. A sua cegueira era social.

Na ocupação da Áustria, sobressaem ainda a manipulação de líderes fracos, a diplomacia enganosa e a realidade longe dos planos megalómanos. Com as devidas diferenças, parece que estamos a comentar... o presente. Vivemos tempos estranhos?

Todas as épocas são perigosas. A maior dificuldade, hoje, talvez seja a de libertarmo-nos de um discurso único, o económico, que se tornou a cantiga moderna. Quem diria que seria a China a defender o comércio livre face aos EUA? Isso, sim, parece-me problemático.

E políticos imprevisíveis, como Trump?

É preciso desconfiar da imprevisibilidade. Hitler, por exemplo, foi muito previsível na sua ação, mas a elite, com algumas exceções, não antecipou a ameaça. Devemos temer tanto uns quanto outros. As políticas atuais são perfeitamente previsíveis, por exemplo. Em França, vota-se à direita, ao centro ou à esquerda, e o resultado é o mesmo. As variações são ridículas. É como se uma corrente mais forte passasse por cima de todas as alternativas. Tenho consciência política há pelo menos 30 anos. Desde então, só tenho visto, sob a proteção da lei, crescer a desigualdade e a autoridade. A segurança sobrepõe-se à liberdade. O que mais conta é a eficácia.

Nasceu em maio de 1968. Antecipa uma revolução?

Apenas sei que vivemos num mundo que se apresenta como definitivo. E isso não existe, como a História nos ensina. Os povos levantarem-se contra as desigualdades, isso parece-me uma inevitabilidade. Será amanhã? Daqui a dez ou a 100 anos? Não sei. Mas as revoluções surgem regularmente. Será diferente no futuro? Não vejo quem possa afirmá-lo.

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